No ano em que se assinalam os 50 anos da publicação dos Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez decidi que era, finalmente, a altura de me dedicar a esta leitura. É um livro exigente: pede-nos tempo e inteireza, uma entrega plena no desenrolar de cada página. No entanto, se exige, também dá em troca: a primeira frase prende-nos de imediato numa trama que se adensa, cada vez mais, por entre analepses e prolepses sem fim, a lembrar que nenhuma história tem uma linha temporal segura, linear e estruturada. É preciso ir lá atrás, trazer tudo e limpar o pó; e depois saltar para apanhar o futuro lá à frente, deixando-lhe um pouco do cheiro antigo. Só assim nos inscrevemos com alguma fidelidade. A história dos Buendía não podia ser a história de uma família qualquer. Está embebida em misticismo, magia, memória e descoberta. A transbordar de amor e solidão.
«Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontar com o dedo.» Na mesma proporção em que o mundo progride, também Macondo e as suas gentes. Uma progressão que desemboca, precisamente, numa retrogressão. Pelo meio ficam os desenvolvimentos naturalmente humanos: as relações, as traições, os interesses tão diferentes consoante se nasce Aureliano ou José Arcadio, as épocas de luxo e de glória, tão estreitas às de miséria. Os nascimentos, os casamentos, as mortes. As camas de rede legítimas e as ilegítimas. A história de uma família durante seis gerações, cheia de sangue a pulsar, da forma mais autêntica: com retidões e muitas falhas de temperamento.
No meio de todo este realismo que esmurra, encontramos, no entanto, lufadas de ar fresco impregnadas de magia. Seja uma chuva de flores amarelas; ou um fio de sangue que percorreu a aldeia até entrar na cozinha de Úrsula, a matriarca, para a avisar da morte do filho; ou ainda uma chuva que durou quatro anos, onze meses e dois dias… estes são apenas alguns dos exemplos do realismo mágico acentuado nesta obra.
De toda a singular família Buendía, não preciso pensar para dizer que foi Úrsula a personagem que mais me prendeu. Passada a leitura continuo a ver Úrsula pelos corredores, de roda dos seus caramelos, sustento doce de toda a família, ou a tratar dos orégãos, ou a matar as formigas intrusas. Um alicerce de todas as personagens, assim como de toda a obra. É ela que, na sua sombra, junta as pontas soltas, desamarra os nós e constrói a teia unificada de toda a história. Para lá da família, desenvolvi um carinho especial por Melquíades e o seu caráter quase divino: omnipresente e omnisciente, ao mesmo tempo que quase criança nas suas invenções e fantasias. Ainda assim, a personagem que, fora da família, conserva — à imagem de Úrsula — um papel unificador, é Pilar Ternera e os seus olhos que leem o futuro dos Buendía melhor que as cartas que deita. Comum a todas as personagens, sem exceção, é, sem dúvida, a solidão em que cada uma se encontra, ou desaba, ou procura. Aureliano Buendía afirma, a certa altura, que: «o segredo de uma boa velhice não é mais do que um pacto honrado com a solidão».
A questão que fica, no final, é saber onde é que esta história estava já escrita, iniciada. Porque cem anos não chegam para a conceber de forma tão integral e absoluta como a encontrei. Haverá por aí um quarto de Melquíades, cheio de pó e história, e o García Márquez não terá sido mais do que um sortudo.
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