Toda a gente o conhecia. Vindo sabe-se lá de onde, aparecia sempre pelo Natal, época em que o lagar de azeite funcionava.
Como chegava no início da safra, desaparecia quando esta terminava: em silêncio. Durante o tempo que permanecia no lagar, contava histórias. A seu lado uma caneca com café que os lagareiros faziam, mas que repartiam com ele. Ia bebendo em pequenos goles, sorvidos com um barulho semelhante a música num gira discos velho e roufenho.
Um dia, deu ao meu irmão pequeno, na época, umas pedrinhas ovais e pintalgadas de azul. Disse-lhe que eram ovos de anjo.
No meio das suas histórias contou-nos que há muitos anos nasceu uma criança, linda, rodeada de anjos, pastores e Reis, vindos de longe, guiados por uma estrela. De todos recebeu presentes, levados com carinho e algum sacrifício. Os caminhos encheram-se. Todos queriam ser os primeiros a chegar.
Ninguém notou mas, com eles, e da forma que pôde, um pequeno aranhiço também rumou à gruta. Quando chegou, e ainda sem notar a sua presença, deu conta que não tinha nada para oferecer. Subiu a um arbusto e toda a noite teceu uma teia enrolada aos ramos frágeis.
De manhã estava pronta e, com as gotinhas de orvalho, brilhava ao sol parecendo pequenos pingentes de prata e ouro.
Enquanto a vida no lagar corria com a lentidão própria do esmagar e caldar, o azeite corria em bica para a “ fonte”. Aí o lagareiro mexia com a vara fininha de marmeleiro, a ver onde a água-ruça se separa e começa o azeite.
E nós, brincando por ali, passávamos o tempo e havia sempre mais uma história.
Contou que, uma vez, num Natal qualquer, sem lugar para onde ir e sem família, se sentou frente à lareira, junto do presépio, em casa do pai, falecido há tempo. Sentou-se e acomodou-se. Mais uma vez olhou para o presépio. Arregalou os olhos quando viu que as figuras começavam a movimentar-se. As ovelhas, com fome, comiam as pontas dos arbustos. O pastor corria não deixando o rebanho tresmalhar. O forno incandescente cozia o pão que a mulher de avental branco amassava na gamela, lá atrás. O moinho girava e as velas movidas a água trazida de um regatozinho, feito com prata de chocolate.
Nossa Senhora e S. José sorriam, sentados junto à manjedoura onde a vaca e o burro aqueciam o Menino com o seu bafo. Um galito, empoleirado no campanário, cantou, anunciando a meia-noite.
O Menino, deitado na palha da manjedoura e vestido com uma camisinha feita de tecido branco de cetim bordado a ouro, sorria, também.
Lentamente, o Menino levantou-se e veio sentar-se no seu colo. Aninhou-se nos braços e……. adormeceu.
Ali ficaram ambos, em paz. Até que começou a sentir as calças, ao nível dos joelhos, a ficarem quentes e molhadas.
Acordou! Tinha adormecido. Já era manhã.
Olhou de novo para o presépio. Tudo na mesma. Nada estava fora do local onde os colocara antes.
Firmou-se melhor no Menino, ainda a tempo de ver o pé pequenino e descalço, a mexer e a esconder a ponta molhada do seu vestido branco, bordado a ouro.
O sol anunciou que já era manhã. Uma manhã soalheira de dia de Natal. A fogueira ardeu até ao fim e ele ficou a pensar que tinha sido um Natal bem diferente de todos os outros Natais.
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