No Natal recebi “Os Loucos da Rua Mazur”, de João Pinto Coelho, que recebeu o prémio Leya 2017. Só isto já seria suficiente para me assegurar a qualidade, mas li a pequena descrição da capa com alguma apreensão: «Na Polónia ocupada por soviéticos e alemães, o horror vem de quem menos se espera». E tive algum receio. Em primeiro lugar porque um romance histórico exige demasiado, para que consiga equilibrar justamente esses dois conceitos, o de romance e o de história, sem diminuir ou apagar qualquer um deles, engrandecendo o outro. Por outro lado, a segunda guerra mundial e todo o massacre a ela associada fazem parte dos meus interesses pessoais há bastante tempo e não queria encontrar detalhes fora do lugar. Não aconteceu.
O romance desenrola-se em três tempos distintos: antes, durante e depois da guerra (este último tempo ora gira em torno do pós guerra ora regressa aos tempos de hoje), e nele encontramo-nos com três personagens principais, onde este principal tanto se centra em Eryk, como em Yankel ou em Shionka. Sem roubos de protagonismo.
Sem querer desvendar a narrativa, que me surpreendia a cada capítulo, julgo que este é um livro acima de tudo sobre o tempo e a memória. Sobre a visão, também. A visão diferente de três amigos ao longo dos tempos, ironicamente sendo um deles cego. Três perspetivas em três tempos. Julgo que seria uma síntese acertada. E três perspetivas em três tempos exige um jogo de cintura que agarrou a minha leitura. Obrigava-me a mim mesma a parar, a levar a angústia ou a surpresa, ou o sorriso para o dia seguinte. É um daqueles livros que não queremos que acabe, embora ansiemos cada passar de página.
Theodor Adorno, filósofo contemporâneo, disse que «escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro». Entendemos o significado desta expressão. Como pode nascer poesia depois de uma humanidade anulada como o foi durante a segunda guerra? No entanto, é Eryk, que se tornará um famoso escritor, que nos mostra a certa altura, regressado de um campo de trabalhos forçados, uma realidade diferente:
«(…) também tinha escrito uns contos, mas precisava da poesia para explicar “a que cheiram cem tipos espremidos num vagão”. (…) Eryk vinha diferente, escondia-se nos versos para não ter de dizer o que não queria (…).».
E se Eryk se destaca pela palavra, Yankel destaca-se pelos sentidos apurados em sensibilidade pura, a fazer frente à falta de visão. E Shionka pelo corpo quase selvagem, que expressa mais que a boca muda. Três inseparáveis que a guerra dividiu, mas que a Paris de 2001 — tão distante da Polónia das décadas de 30 e 40 — ligará de novo para juntar memórias conscientes e dolorosas. Para as personagens e para o leitor. Mas que valem realmente a pena. E não é um livro sobre a guerra ou a sobrevivência, nem sobre a religião ou o amor. É um livro sobre a humanidade no seu estado mais inocente, mas também mais cru e instintivamente animalesco.
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