“A Gorda”, de Isabela Figueiredo

“A Gorda”, de Isabela Figueiredo

Desde 2016, quando saiu A Gorda, que eu o tinha marcado como livro a ler. Lembro-me de ouvir na rádio, ler nos jornais e nas redes sociais imensas críticas e o livro tinha tudo aquilo que um livro deveria ter. O isco já estava lançado mas os livros foram-se sucedendo e A Gorda foi ficando por ler. Este início de verão, por sugestão de uma bibliotecária (vão por mim, as bibliotecárias fazem um aconselhamento literário fenomenal, está-lhes no sangue) lá me veio A Gorda parar às mãos. E logo numa altura propícia a crises e chiliques frente ao espelho. Das duas uma: ou começava uma dieta rigorosa ou espanejava pelo mundo os meus quilos a mais, sem qualquer complexo. Mas ler a Isabela Figueiredo é muito mais do que este simples maniqueísmo.

Sempre gostei de livros que abusam das analepses. Fazem-nos viajar no tempo e na história da personagem como uma quase divindade, presente para lá do tempo e do espaço. Mas este também não é um livro com um presente específico e que vá lá atrás regularmente. Este é um livro sem tempo e do tempo todo. Tão essencial é a adolescência como o dia-a-dia dos seus trabalhos, como num instante voltamos ao tempo da faculdade. Todos os tempos numa teia só, bem desenhada e a apanhar-nos nela sem piedade. Relembramos esses tempos, são nossos também. Nessa teia de tempos dispersos não há a ânsia de encontrar respostas ou justificações para o presente: há vida, apenas, se isso fosse pouco.

Se o primeiro capítulo é o da porta de entrada e o último é o do hall, com A Gorda não ficamos à entrada. Percorremos uma casa inteira. Uma casa que é muitas vidas, dois países e muitas experiências, tudo em simultâneo e com ajuda de uma banda sonora sempre presente, sempre coincidente. É por entre as diferentes divisões que divisamos Lourenço Marques, Matola, Lourinhã, Minho, Alentejo, Almada. A vida da Maria Luísa, dos seus pais, da tia Maria da Luz, da prima Fá, do senhor diretor, da Tony, do Leonel e do Tiago, dos cães e, em cada centímetro de casa, em cada partícula de pó, em cada cheiro da marmelada dos domingos de outono, do David.

«A vida adulta raspa a pele.», diz-nos a determinada altura. Mas se a vida adulta raspa a pele as memórias da adolescência não a hidratam, pelo contrário. Preparam essa raspagem com uma esfoliação constante, ainda que tantas vezes disfarçada. E Maria Luísa aprende a arte da fortaleza, e de ser ou tudo ou nada, como sublinha tantas vezes. Entrei com a Luísa no carro, estive com ela na casa dos familiares, no colégio, na faculdade, no trabalho e nas mesas de café. Acampei com ela, estive com ela em casa. Senti-me Luísa inúmeras vezes. E é isso que procuro num livro. E foi por isso que A Gorda foi muito mais do que previa, embora já previsse bastante.

Vanessa Martins

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